20 de nov. de 2012

Antônio Cardoso, na Bahia, é o município mais negro do país

Redação Portal Clériston Silva PCS 

“Você é muito bonita, morena”, ouviu Mirian de um homem que tentava cortejá-la. “Morena, não, que isso não existe. Eu sou uma negra bonita!”, foi o que respondeu ela, filha da comunidade quilombola do Gavião, em Antônio Cardoso, a 105 quilômetros de Serrinha, um tanto Agreste e um tanto Sertão. 

Hoje, Dia da Consciência Negra, e em todos os outros dias do ano, Mirian Jorge de Almeida, 29 anos, não tem qualquer pudor de se afirmar como de fato é: “Sou negra, forte, independente e trabalho para que os negros tomem conhecimento do valor de sua história”.

Na cidade em que Mirian nasceu, mais da metade dos moradores já conhece o valor de sua história. Para ser mais preciso, 50,65% dos 11.554 habitantes de Antonio Cardoso se declararam negros no último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010. O percentual coloca o município como único de todo o Brasil em que a maioria da população se vê (e se diz) negra. 

“Era pra ser muito mais. Cansei de entrevistar negros que ainda têm vergonha e se declararam pardos. Não podemos influenciar na pesquisa, só damos as opções”, revela a professora de redação Elaine Aragão, que atuou como agente de pesquisa do Censo.

Em Antônio Cardoso, a soma do percentual de pessoas que se declararam negras e pardas alcança 91,67%, oitavo do país. “Uma senhora disse assim: branca eu não sou, nem indígena. Preto é o cão. Então coloque parda”, lembra Elaine, não sem lamentar.

Hoje — e todos os dias do ano — a negra Mirian batalha para romper a lógica desta equação. Como integrante do Movimento de Jovens de Antônio Cardoso (Mojac), busca referências do passado para mudar o presente. “Negros que não se assumem são criticados, mas não lembro de nenhuma professora me dizer que eu era negra. Diziam que era morena”.

Na visão de Mirian, nas escolas, o negro é colocado em papel secundário na sociedade. Para ela, não adianta agora querer “enfiar” na cabeça das crianças e dos jovens que os negros são bons “e pronto”. É preciso, diz ela, mostrar o outro lado da história para que as pessoas se orgulhem da própria identidade.

Trabalho - Com o filho, quatro irmãos, mãe, avós, sobrinhos, tios e primos, Mirian ainda vive no Gavião, comunidade já certificada como remanescente de quilombo pela Fundação Palmares, do Ministério da Cultura. Na pouca terra que têm, os cerca de 500 moradores criam pequenos animais e plantam o essencial para a sobrevivência. Todos os dias do ano, brigam por espaço e oportunidades.

“A escravidão só mudou de forma. Continuamos sem terra e temos que trabalhar para os fazendeiros. Eles deixam plantar alguma coisa pra gente, mas é só um jeito de trabalharmos de graça para limpar a caatinga e deixar o capim pro gado deles”, afirma Mirian.

Sua posição é compartilhada por Ozéias de Almeida Santos, 29 anos, geógrafo que acaba de ser eleito vereador e será o primeiro membro da Câmara de Antônio Cardoso nascido em comunidade quilombola.

Nativo da comunidade de Paus Altos, ele realiza pesquisas sobre os escravos da região e luta para que mais agrupamentos remanescentes de quilombos sejam certificados pela União. A sua já foi, mas outras, como Santo Antônio, Pêri e Tócos ainda aguardam na fila da burocracia.

Os estudos de Ozéias mostram que a quantidade de negros em Antônio Cardoso está ligada à ocupação da região no final do século XIX. Em 1888, a Lei Áurea deu liberdade aos escravos mas não deu trabalho aos negros livres. Assim, muitos permaneceram nas fazendas dos velhos senhores labutando em troca de poder plantar algo para comer, exatamente como Mirian faz hoje.

Escravos - Ali se formaram quilombos de permanência, diferentes dos de refúgio, que abrigavam escravos fugitivos. “Aqui se juntaram escravos libertos das fazendas de fumo da região ou de fazendas de São Gonçalo, Cachoeira, cidades próximas. Eles trabalhavam como ‘rendeiros’, o que dava quase no mesmo que ser escravo”, observa Ozéias, que mora em Paus Altos com a mãe e cinco irmãos. 

Professor da rede estadual, Ozéias revela que alguns alunos estranham quando ele refere-se a si próprio como preto. De punho cerrado e mostrando o próprio braço para enfatizar o que diz, se expõe: “Nossa cor é preta. Olha aqui. Temos que ter consciência e nos orgulhar disso. Ainda há muitas feridas abertas. As pessoas mais velhas preferem o silêncio, mas, às vezes, o silêncio esconde muito. Está na hora de se expressar”.

Hoje — e em todos os dias do ano — os negros de Antônio Cardoso se expressam através do resgate da memória, dos terreiros de candomblé, do samba de roda e da capoeira. Para o professor Telito Rodrigues, pesquisador da história local, o índice de negros vai crescer no próximo Censo. “Muitos negros tinham vergonha da sua história. Alguns não queriam estudar porque achavam que a escola não era espaço para eles. Mas isso já mudou. Os negros tomaram consciência do que são e do que podem fazer na sociedade. E é assim que tem que ser”. Então, que seja. Hoje e em todos os dias do ano.

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